Dr. Gedegilson Moisés

Imagine uma infecção que se instala de forma quase silenciosa, mas que, em poucas horas, pode levar alguém saudável à beira da morte. Parece exagero? Pois essa é a realidade da colangite aguda, uma complicação das pedras na vesícula que poucos conhecem, mas que exige atenção imediata. Muitas vezes, os primeiros sinais são confundidos com uma gripe ou virose, e quando se percebe a gravidade, o quadro já evoluiu para uma infecção generalizada (sepse).

Se você tem ou conhece alguém com cálculos biliares, este texto pode literalmente salvar vidas. Vamos explicar, de forma clara e objetiva, o que é a colangite aguda, como ela se manifesta, quais os riscos reais e, principalmente, como prevenir que algo tão perigoso aconteça.


colangite aguda

Quem sou eu?

“Curar quando possível, aliviar quase sempre, consolar sempre.” – Hipócrates

Gosto de desafios e, em minha vida profissional, não é diferente. O universo e a complexidade do corpo humano deslumbram-me; no entanto, é no centro cirúrgico que me sinto extasiado com a arte de  oferecer cura através da cirurgia. Cada etapa deste processo ensina-me a ser um ser humano melhor.

Ouvir sobre as dores, angústias, medos, desespero e desilusões dos pacientes, acolhê-los e explicar todo o processo, gerando esperança, traz-me imensa satisfação. Este processo forma um vínculo de confiança enorme, muitas vezes fazendo-me sentir como parte da família dos pacientes.


Ao término de cada cirurgia, mesmo em meio ao cansaço, sobressai o sentimento de regozijo em praticar o dom e a habilidade que Deus me deu para contribuir com as pessoas que me procuram. No final de cada tratamento, vivenciar o antes e o depois, vendo a alegria e a vitalidade em cada um, com sorrisos no rosto, revitaliza a minha alma.

Colangite aguda é uma infecção das vias biliares, os canais responsáveis por transportar a bile do fígado até o intestino. A forma mais comum e grave é a colangite aguda ascendente, que acontece quando há uma obstrução (geralmente por pedra) no ducto colédoco, associada à entrada e proliferação de bactérias.

Essa obstrução impede o fluxo da bile, criando um ambiente propício para a multiplicação de germes. O problema se espalha rapidamente, podendo comprometer o fígado, o pâncreas e o sistema circulatório. Em casos graves, evolui para sepse e falência de múltiplos órgãos.


Causas da Colangite Aguda

A causa mais comum da colangite é a obstrução por cálculos biliares, que saem da vesícula e ficam presos no ducto biliar principal. Mas há outras causas menos comuns:

  • Estenose (estreitamento) das vias biliares;
  • Tumores de pâncreas ou colédoco;
  • Lesões pós-cirúrgicas ou após CPRE;
  • Parasitas em regiões tropicais.

Em resumo: qualquer coisa que obstrua o fluxo da bile pode permitir que bactérias se instalem e causem infecção.


Como a infecção começa?

A bile normalmente é estéril. No entanto, quando seu fluxo é bloqueado, a pressão aumenta nas vias biliares. Essa estase facilita que bactérias do intestino “subam” pelos ductos até o fígado, iniciando a infecção. As mais comuns são:

  • E. coli
  • Klebsiella
  • Enterococcus
  • Enterobacter

Se a infecção não for controlada rapidamente, essas bactérias entram na corrente sanguínea, levando à sepse.


Sinais e Sintomas da Colangite

Os sinais clássicos são conhecidos como a Tríade de Charcot:

  1. Dor abdominal no quadrante superior direito (ou em faixa);
  2. Febre com calafrios;
  3. Icterícia (pele e olhos amarelados).

Em casos mais graves, surge a Pêntade de Reynolds:

  1. Hipotensão (queda de pressão);
  2. Confusão mental.

Quando essa pêntade aparece, o risco de morte é altíssimo. Trata-se de uma emergência médica, que exige internação imediata.

icterícia na colangite aguda
Icterícia na Colangite Aguda.

🧠 Quem foram Charcot e Reynolds? Breve histórico dos nomes que salvaram vidas

Você já ouviu falar da Tríade de Charcot ou da Pêntade de Reynolds? Esses nomes médicos que parecem complexos têm uma história real por trás, ligada à observação clínica e à tentativa de salvar vidas — bem antes de termos tomografias ou antibióticos modernos.

🧬 Jean-Martin Charcot (1825–1893)

Charcot foi um médico francês considerado um dos pais da neurologia moderna, mas também fez grandes contribuições na medicina interna. Em 1877, ele descreveu três sinais clássicos presentes em pacientes com colangite: febre, dor abdominal e icterícia. Essa tríade se tornou um marco no diagnóstico precoce da infecção biliar, mesmo em uma época em que os recursos diagnósticos eram extremamente limitados. Por isso, até hoje, esses três sintomas juntos são chamados de Tríade de Charcot.

🧬 Benedict Reynolds (1922–2008)

Reynolds foi um médico americano que, quase cem anos depois, percebeu que alguns pacientes com colangite apresentavam uma forma muito mais grave da doença, e propôs adicionar dois sinais: queda da pressão arterial e confusão mental. Isso formou a chamada Pêntade de Reynolds, usada até hoje para identificar casos de colangite com risco imediato de morte, que exigem internação urgente em UTI e descompressão biliar.

Esses dois médicos ajudaram, com suas observações clínicas, a salvar milhares de vidas mesmo em tempos em que a medicina ainda caminhava sem os recursos modernos. Hoje, seus nomes seguem sendo lembrados não apenas por quem estuda medicina, mas por quem busca entender melhor o que se passa em seu próprio corpo.


Diagnóstico da Colangite

O diagnóstico envolve:

🧪 Exames laboratoriais:

  • Leucocitose (aumento dos glóbulos brancos)
  • Elevação das bilirrubinas e enzimas hepáticas (TGO, TGP, GGT, FA)
  • Provas inflamatórias (PCR, procalcitonina)

📸 Exames de imagem:

  • Ultrassonografia: visualiza dilatação dos ductos e, às vezes, o cálculo.
  • Tomografia de abdome: avalia complicações associadas.
  • Colangiorressonância (CPRM): excelente para visualizar cálculos e estreitamentos.

Ultrassom mostrando dilatação biliar
Tomografia mostrando colédoco dilatado com cálculos.

Tratamento da Colangite Aguda

🚨 1. Estabilização clínica:

  • Hidratação venosa intensiva;
  • Antibióticos de largo espectro (ex: ceftriaxona + metronidazol);
  • Monitoramento de sinais vitais;
  • Suporte em UTI, se necessário.

🧪 2. Descompressão biliar urgente:

A infecção só será controlada com a retirada da obstrução. Isso é feito por:

  • CPRE (Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica): insere-se um endoscópio até a papila duodenal para remover o cálculo e drenar a bile.
  • Drenagem percutânea: alternativa para pacientes instáveis ou sem acesso à CPRE.
CPRE em paciente na colangite aguda
Uso da CPRE na colangite aguda.

🩺 3. Cirurgia eletiva posterior:

Após a infecção ser controlada, a colecistectomia (retirada da vesícula) deve ser feita para evitar novas crises de colangite aguda.


O caso de seu Raimundo

Raimundo, 67 anos, aposentado e ex-tabagista, descobriu cálculos na vesícula durante um exame de rotina, mas achou que não era “nada sério”. Como nunca teve dor intensa, deixou para depois.

Em uma manhã de sábado, acordou com febre alta, calafrios e tontura. Sua esposa notou que ele estava amarelado e confuso. No hospital, foi diagnosticado com colangite aguda grave.

Foi internado direto na UTI. Recebeu antibióticos e hidratação, mas sua pressão caía e a função renal piorava. Só após a realização de uma CPRE, com a retirada de uma pedra que obstruía o colédoco, o quadro começou a melhorar.

Dois dias depois, já consciente, Raimundo perguntou à esposa:

“Se eu tivesse tirado a vesícula antes, isso teria acontecido?”

A resposta, infelizmente, foi: provavelmente, não.


Complicações da Colangite

Se não tratada a tempo, pode evoluir para:

  • Sepse grave (infecção generalizada)
  • Abscesso hepático
  • Falência renal
  • Óbito

A taxa de mortalidade da colangite sem tratamento pode chegar a 50%. Com tratamento adequado, cai para menos de 10%.


Mitos e Verdades

“A colangite só ocorre com dor forte.”

❌ Mito – pode começar com sintomas leves e evoluir rápido.

“Se a febre ceder, está tudo bem.”

❌ Mito – a infecção pode evoluir silenciosamente.

“Não precisa operar se não sente dor.”

❌ Mito – a pedra pode sair da vesícula e causar obstrução a qualquer momento.

“A colangite é rara.”

✔ Verdade – mas quando ocorre, é grave e exige ação imediata.


FAQ – Perguntas Frequentes

1. Colangite é o mesmo que hepatite?

Não. A colangite é uma infecção dos canais biliares; hepatite é inflamação do fígado.

2. Quem tem pedra na vesícula sempre vai ter colangite?

Não, mas o risco existe, principalmente se houver migração de cálculo.

3. A CPRE é perigosa?

É um procedimento de endoscopia seguro quando feito por profissionais experientes. Pode ter complicações, mas salva vidas em casos de colangite.

4. Após a colangite, é obrigatório operar?

Sim. Para evitar nova obstrução, a retirada da vesícula deve ser feita após estabilização.


Conclusão

A colangite é uma emergência silenciosa que pode se instalar em quem nem imaginava estar em risco. Um cálculo pequeno pode obstruir o ducto biliar e desencadear uma infecção grave. O segredo está na prevenção: se você já sabe que tem pedra na vesícula, não espere pelo pior.

Converse com seu médico sobre a colecistectomia eletiva. Evitar uma emergência é sempre melhor do que remediar.


Fontes e Leituras Complementares

  1. Tokyo Guidelines 2018 for the Management of Acute Cholangitis and Cholecystitis
  2. Endoscopic management of acute cholangitis
  3. Diagnosis and treatment of acute cholangitis
  4. ERCP in Acute Cholangitis
  5. Management of bile duct stones and cholangitis
  6. Mortality and Prognostic Factors in Acute Cholangitis
  7. Sepsis due to biliary infection: early diagnosis and treatment
  8. Pancreatite Biliar

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